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Noite de terror
Rodolfo de Souza
26/10/2023 | 10:40
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É madrugada, e o silêncio revela uma calma insuspeitada. O momento está carregado de uma normalidade inquieta que em nada se assemelha ao que se entende por normal em outras partes do mundo. Mesmo porque, ali qualquer som pode despertar a gente que teme o barulho, barulho qualquer. Isso por causa das bombas, tiros, gritaria... Eventos corriqueiros na vida de quem habita uma terra onde a morte violenta faz parte da história de cada um. Região onde o medo protagoniza a existência, como num filme de terror, em que este determina o roteiro.

De repente, o estrondo. E o despertar apavorado empurra quem dormia há pouco para fora da cama e do prédio que treme de alto a baixo. Ninguém forma opinião acerca da procedência do barulho, de sua localização... É só correria, afinal. O ato de se levantar e correr para buscar proteção parece até ensaiado, uma vez que ninguém ali indaga a razão de ter de fugir. Somente foge, ou melhor, corre não se sabe bem para onde. São mães com seus pelos filhos, que choram e gritam de pavor; são pais que tentam, em vão, proteger as famílias em meio ao caos. 

Outro estrondo, e o prédio ameaça desabar e engolir as pessoas que se atropelam escada abaixo.

Mas, em dado momento, os componentes de uma família se dispersam. Difícil permanecerem unidos quando o pânico se instaura, e o alvoroço é geral. Estão ligados agora somente pelo coração. E as lágrimas de tristeza e pavor, misturadas ao pó do reboco se desmanchando, criam uma borra que dificulta a visão. Mas é preciso correr! Não se pode parar, sob pena de ser morto debaixo dos pés do pavor que nada vê à sua frente, senão o caminho da rua.

Mas o que procura esse povo? Certamente um refúgio. Mas a rua também é alvo de foguetes, estilhaços, pedras, cacos de todo o tipo, fogo... Correr para onde, afinal? Não importa! Correr sem pensar é o que resta à gente que vê dor e sofrimento por toda a parte. É a noite de explosões e gritos que o outro promoveu como forma de fazer justiça, porque teria sido atacado por alguém que, por certo, não pediu licença àquela gente que agora é obrigada a fugir da vingança que recai sobre sua cabeça.

Mas se aquelas pessoas não agrediram quem quer que fosse, por que então devem pagar preço tão alto? Ninguém tem a resposta.

No dia claro, sirenes de ambulâncias se confundem com os lamentos que reclamam a má sorte. E o povo vasculha os escombros à procura de seus mortos ou, quem sabe, de algum sopro de vida vindo de buraco qualquer no concreto. 

Por entre os ferros retorcidos, quem sabe, se encontre alguém que não tenha sucumbido ao caos, embora ali tudo esteja fadado a morrer, até mesmo a esperança.

E uma câmera, símbolo da modernidade, espreita a dor que escancara ao mundo a sua boca desdentada. E nela há uma menina que, entre lágrimas de assombro e revolta, deseja uma resposta para a pergunta sobre o que fará da vida agora que toda a sua família está morta. Ela chora e seu pranto percorre os quatro cantos para tocar o coração das pessoas sensatas que se comovem diante da criança de dez anos, sozinha, perdida em meio aos escombros, em meio ao sangue dos seus. 

Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.com




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